Cobrança do uso da água: uma polêmica necessidade.

            A cobrança pelo uso da água de domínio público é uma questão que há muito preocupa os governantes, pois já em 1934 este importante mecanismo de gestão de recursos hídricos estava contido em decreto promulgado pela União, instituindo o Código da Água. Em janeiro de 1997, este dispositivo foi referendado através da Lei no 9.433, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e dá outras providências, ficando conhecida como a Lei das Águas do Governo Federal.
            No âmbito estadual, a Lei de Cobrança do Uso da Água é objeto de negociação para estabelecer sua regulamentação, que permitirá a aplicação da lei. Entretanto, no momento há um impasse, pois o encaminhamento esbarra em um ponto de divergência bastante conflitante: o fato de o Governo do Estado pleitear que parte dos recursos arrecadados (fala-se em 50%) vá diretamente aos cofres do Tesouro Estadual para uso indiscriminado.
            A proposta original previa que a totalidade deveria ser aplicada na própria bacia onde for arrecadado, e sob a gestão do respectivo comitê (eventualmente este, a seu critério, poderia ceder e/ou emprestar parte não utilizada de seus recursos apenas para ser aplicado em outra bacia, e para os mesmos fins especificados na lei). Caso a proposta do Governo venha a vingar, a cobrança do uso da água poderá tornar-se, simplesmente, mais um imposto.
            A cobrança deverá ser efetuada levando em consideração as diferentes formas de utilização da água. Assim, quando a água está disponível na natureza pode ser encarada da mesma forma que um minério, água natural, um bem de domínio público, e desta forma a permissão ao seu uso terá que ser outorgada. A autorização de uso de um bem de domínio público deverá ser cobrada na forma de um preço público.
            Já quando para a utilização da água tenha que ocorrer algum investimento, seja para a sua captação ou para bombeamento (na superfície ou no subsolo), então é considerada como um insumo para outras utilizações (tratamento, geração de energia, diluição de poluentes, etc.), água bruta. Assim, sua cobrança será feita mediante a utilização de tarifa de água bruta.
            Entretanto, todas as discussões têm tido como ponto central a questão do uso e a cobrança como forma de gerenciar a escassez: pouco se tem dito ou se preocupado com a produção de água. A água doce disponível é resultante do processo de evaporação (principalmente dos oceanos) que é transportada pelo vento e retorna à superfície do planeta na forma de chuva, funcionando como um radiador lacrado para resfriamento de um motor de combustão interna, de tal forma que não há como repor eventuais perdas durante o processo. Neste sistema, o solo é um grande reservatório, que temporariamente armazena a água das chuvas, fornecendo-a à planta conforme sua necessidade.
            Quando há precipitação excessiva, podem ocorrer perdas por escorrimento superficial, causando erosão, ou por percolação profunda, indo atingir o lençol freático. Na realidade, há perda do ponto de vista de disponibilidade para a planta, mas há um ganho do ponto de vista de recarga dos aqüíferos subterrâneos que irão abastecer rios e córregos. Estudos indicam que em média cerca de 20% da precipitação pluviométrica poderão infiltrar-se, abastecendo o solo e os aqüíferos1.
            Para recuperar a 'saúde' de nossos rios, têm-se que promover intensa recuperação de matas ciliares e fomentar o cumprimento à legislação com respeito à chamada 'reserva legal'. Segundo Souza2, em entrevista publicada em Ambiente Legal de agosto de 2002, 'os proprietários rurais, na sua maioria, ainda não perceberam que o direito de propriedade mudou, e que a mesma deve cumprir uma função social e que cada qual deve dar sua contribuição'. Para o jurista, a esmagadora maioria não percebe ou não lhe foi explicada a mudança do direito de propriedade, encarando as restrições contidas no Código Florestal como uma perda de direito e intromissão indevida em sua propriedade.
            Porém, a maioria das propriedades às margens de córregos e ribeirões, e que deverão recuperar as respectivas áreas de proteção permanente (APP), têm tamanho de médio a pequeno, e seus proprietários, via de regra, não possuem recursos e/ou fluxo de caixa para arcar com a recuperação. Por exemplo, segundo estudo em andamento, a sub-bacia do ribeirão Campestre, um dos formadores do ribeirão Piracicamirim (afluente do rio Piracicaba) com área de cerca de 1.870 hectares, está retalhada em 65 propriedades das quais 83% com área total inferior a 50 hectares. Em 59 das propriedades há o cultivo de cana-de-açúcar, entregue na Usina Santa Helena, do Grupo Cosam, que está a um raio máximo de 10 km da produção.
            Numa tentativa de avaliação grosseira do custo de oportunidade da terra, poderíamos adotar como parâmetro inferior o valor de arrendamento (a opção mais simples e menos rentável). Neste caso, como convencer os proprietários a substituir, espontaneamente, a cana pela mata ciliar, abrindo mão de um valor correspondente a 35 a 40 toneladas por ano por alqueire arrendado? Tem-se que buscar formas alternativas de apoio à restauração florestal, pois não apenas o investimento no plantio é oneroso, como também o é a manutenção dos primeiros anos, quando as mudas estão mais expostas a pisoteios e a queimadas.
            Uma sugestão a ser estudada seria a de o governo intermediar projetos de seqüestro de carbono com recuperações em áreas de interesse de grupos agroindustriais. O apoio tecnológico e logístico poderia ter assessoramento das equipes técnicas dos órgãos governamentais e o grupo empresarial daria o aval garantindo a execução e o monitoramento do projeto. Assim, por exemplo, uma firma produtora de sucos cítricos poderia atuar nas microbacias onde estejam alocados seus fornecedores de matéria-prima, promovendo 'contratos casados' de recebimento do produto com a execução da restauração. Desta forma, agregaria pequenas parcelas de novas florestas e poderia atingir valores significativos de toneladas de carbono seqüestradas, passíveis de serem negociadas nos mercados financeiros.
            Este tipo de fomento governamental recebe apoio do Banco Mundial (Bird)3, pois, segundo estudos realizados pelo banco e pela Fundação Mundial para a Natureza (WWF)4 em 105 grandes cidades, cerca de um terço tem o fornecimento de água potável baseado em florestas protegidas, entre elas Tóquio, Nova York, Barcelona e Melbourne5. De acordo com David Cassells , o especialista em recursos florestais do Bird, 'para muitas cidades, proteger as florestas ao redor de bacias não é mais nenhum luxo, mas uma necessidade'.

1 REICHARDT, K. A A água na produção agrícola. São Paulo. Editora McGraw-Hill do Brasil Ltda.

2 Dr. Paulo Roberto Pereira de Souza leciona Direito Ambiental em Maringá e é vice-presidente da      Associação Brasileira de Advogados Ambientalistas.

3 Banco Mundial:www.worldbank.org

4 WWF:www.wwf.org

5 Salvar los bosques es la mejor forma de lograr agua limpia. Infoägua Notícias. Capturado de http://www.aguamarket.com/temas_interes/, em 29 de setembro de 2003

 

 

Data de Publicação: 10/11/2003

Autor(es): Paulo Edgard Nascimento De Toledo (ptoledo@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor